Órgãos de Portugal

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TRANSCRIÇÃO DAS BIOGRAFIAS DOS FONTANES E DE CERVEIRA, CONFORME ESTÃO MENCIONADAS NO "DICCIONARIO BIOGRAPHICO DE MUSICOS PORTUGUEZES" DA AUTORIA DE ERNESTO VIEIRA - EDIÇÃO DE 1900

  

Fontanes (Frei Simão). Auctor  dos grandes orgãos da sé de Braga, o maior dos quaes é sem duvida o mais grandioso que existe nas egrejas do Minho.

Esses orgãos são os que estão collocados no coro grande (o templo tem mais tres). No maior lê-se esta inscripção: Fr. Simon Fontanes Gallœcianus. Fecit. anno 1738. Era natural da Galliza, pois que se intitula  Gallœcianus. Este orgão maior, que é o que está da parte do evangelho, tem dois teclados com someiros e registos privativos para cada um. O numero total dos registos é superior a cincoenta, dispostos em tres filas por lado. Está em grande ruina e vae remediando assim, mas com grande lastima, porque merecia uma restauração completa.

O outro orgão de Simão Fontanes, mais pequeno na fabrica de que o seu companheiro, é todavia egual a elle nas partes que o compõem. Foi restaurado ha cerca de dez annos, achando-se em soffrivel estado.

Ambos são da oitava curta, singular disposição do teclado nos orgãos antigos, muito embaraçosa para os organistas modernos.

O orgão do seminario de Coimbra foi construido em 1763 por um João Fontanes de Maqueixa, que não sei se seria parente de frei Simão Fontanes.

 

 

Fontanes (Joaquim Antonio Peres). Organeiro estabelecido em Lisboa durante os fins do seculo XVIII e principio do XIX.

Construiu tres dos seis bellos orgãos de Mafra, ao mesmo tempo que Machado Cerveira que construiu os outros tres. São de Fontanes o da parte da epistola na capella mór e um de cada cruzeiro.

O orgão do cruzeiro direito tem esta inscripção: «Joaquim Antonio Peres Fontanes O fes em 13 de junho d' 1807». Está em muito bom estado e tem bellissimas vozes, mas não é de muito grande fabrica, como tambem não o são todos os outros companheiros. Tem apenas dezaseis registos, dois pedaes para darem separadamente as duas notas fa e dó, e outros dois para flautado e cheio. A extensão do teclado é de quatro oitavas e tres notas – dó a mi.

O cruzeiro esquerdo é consideravelmente maior, contando trinta registos. Foi apeado para se restaurar no tempo dos frades, mas sobrevindo n'esse tempo a extincção das ordens religiosas ficou desarmado em deploravel abandono e ainda assim se encontra. A inscripção que n'elle se vê tem a data de 1806.

Tambem são de Joaquim Peres Fontanes os orgãos da Sé, Magdalena e Loreto, similhantes na fabrica aos de Mafra mas um pouco maiores. Teem boas vozes e são bem construidos.

Os orgãos de Fontanes são muito similhantes aos de Machado Cerveira, mas este levou-lhe grande vantagem nos frontispicios, muitos dos quaes são obras verdadeiramente primorosas.

Ignoro quando falleceu Joaquim Fontanes, mas supponho que a sua existencia não chegou a 1820.

Teve um filho, Antonio Joaquim Fontanes que foi tambem organeiro, occupando-se principalmente de restaurar instrumentos construidos pelo pae. Existem todavia alguns que elle fabricou; um deles é o da egreja matriz de Oeiras, que tem esta inscripção: «Antonio Joaquim Fontanes, o fez em Lisboa no anno de 1829.»

Tem vinte e dois registos, com uma extensão no teclado de quatro oitavas e meia.

Houve tambem um organeiro, mais moderno que os precedentes, chamado Antonio Luiz da Penha Fontana. Occupava-se porém só de restaurações.

Esta coincidencia de organeiros com o mesmo appellido de Fontanes ou Fontana suscita a idéa de que fossem todos membros de uma mesma familia, a qual se teria ramificado durante mais de duzentos annos. Não tenho porém mais solida baze para tal hypothese.

 

Machado e Cerveira (Antonio Xavier). O mais notavel organeiro portuguez e que maior quantidade de trabalho produziu. Era irmão consanguineo do grande esculptor Joaquim Machado de Castro e filho de outro organeiro e esculptor em madeira, Manuel Machado Teixeira ou Manuel Machado Teixeira de Miranda.

Machado Cerveira nasceu em 1 de setembro de 1756 na freguezia de Tamengos, pequena povoação pertencente ao concelho de Anadia, diocese de Coimbra. Seu pae, natural de Braga, tinha casado em primeiras nupcias com D. Thereza Angelica Taborda que foi mãe de Machado de Castro, e em segundas nupcias casou com Josepha Cerveira, natural de Arguim, a qual veiu a ser mãe de Machado e Cerveira.

O nome do pae dos Machados figura no grande orgão que existe (hoje desmantelado) no côro do mosteiro dos Jeronymos do lado do evangelho, o qual tem esta inscripção: «Manuel Machado Teixeira de Miranda o fez e acabou no anno de 1781.» Esse orgão tinha 4:010 tubos (dos quaes existe apenas uma pequena parte), 74 registros e 12 pedaes de combinações; os folles são em numero de sete. E' uma fabrica magestosa, occupando lateralmente todo o comprimento do côro que é extenssisimo, tendo no interior uma escadaria que vae até á abobada do templo para se poder limpar e concertar todas as peças do instrumento. Diz a tradição que o fabricante tinha deixado um volumoso livro manuscripto com minuciosa descripção da sua obra, mas esse livro desappareceu.

Teixeira Machado, porém, se planeou e dirigiu os trabalhos d'esse magnifico instrumento, teve seguramente um ajudante activo e vigoroso que intelligentemente lhe secundasse a direcção, porque elle em 1781 estava já decrepito devendo contar mais de oitenta annos de edade, visto que o seu primeiro filho nasceu em 1721. E esse ajudante não podia ser outro senão o filho mais novo, que com o pae aprendeu a arte de construir orgãos. O ultimo trabalho do mestre foi ao mesmo tempo o primeiro do discipulo, que ao tempo contava vinte e cinco annos de edade.

Em face do orgão precedentemente nomeado, está outro de egual construção, mas que não chegou a ficar concluido e se acha no mesmo estado de desmantelamento do primeiro; tem esta inscripção: « O Ex.mo D. Fr. Diogo de Jesus Jordão sendo bispo de Pernanbuco mandou fazez este orgão no anno de 1789.» Foi construido por Machado filho, porque o pae já a esse tempo era fallecido.

O primeiro orgão completo que Machado e Cerveira construiu e hoje existe em perfeito estado, é o da egreja dos Martyres. Tem na inscripção a data de 1785 e o numero 3 indicando  os instrumentos construidos pelo auctor até essa data.

Talvez elle contasse como numeros 1 e 2 os do mosteiro dos Jeronymos. E' um bom instrumento, não de grande fabrica interna mas de vozes fortes e estridentes segundo o gosto da época. O seu frontispicio tem um bello aspecto ornamental, perfeitamente em harmonia com o local em que foi posto e produzindo optimo effeito olhado do corpo da egreja.

Depois de ter feito o orgão dos Martyres, Machado e Cerveira ganhou um grande credito e foi incumbido de construir todos os orgãos que as egrejas de Lisboa, reedificadas depois do terramoto, tiveram de adquirir; a sua missão n'esta especialidade foi identica á de Pedro Alexandrino na pintura. Assim é que, com as mesmas dimensões do orgão dos Martyres embora com diferentes frontispicios, produziu successivamente os orgãos de S. Roque, convento da Estrella, convento de Odivellas (actualmente na egreja de S. Julião), Sacramento, Santa Justa, os tres de Mafra, o da capella real de Queluz, além de muitos outros menores, como os do Socorro, Santa Isabel, Boa Hora (em Belem), Anjos, S. Thiago, S. Lourenço, ermida da Victoria, Encarnação, etc. Fabricou tambem muitos instrumentos para diversas egrejas das proximidades de Lisboa, como Barreiro, Lavradio, Coruche, Marvilla, Santarem (onde há tres, sendo o mais consideravel o da Misericordia), Santa Quiteria de Meca, etc. Egualmente mandou muitos para o Brasil, alguns d'elles de grandes dimensões. Por motivo de ter construido os orgãos de Mafra e Queluz, foi nomeado organeiro da casa real – Organorum regalium Rector, como elle mesmo se intitulava – e condecorado com o habito de Christo.

Um dos ultimos instrumentos produzidos por este laborioso fabricante foi o orgão que existe ainda em bom estado na freguezia do Barreiro; tem o numero 103 e data de 1828, exactamente o anno em que elle morreu.

Machado e Cerveira entrou para a irmandade de Santa Cecília em 22 de novembro de 1808, sendo muito considerado n'esta corporação. Exerceu com a maior pontualidade e zelo, durante os ultimos annos e até poucos mezes antes de fallecer, o cargo de primeiro assistente, presidindo a todas as sessões da mesa.

Tinha ultimamente officina e moradia n'uma das propriedades da Casa de Bragança ao Thesouro Velho, creio que a mesma que occupára seu irmão Machado de Castro.

Morreu em Caxias, para onde tinha ido já muito doente, em 14 de setembro de 1828, contando 72 annos de edade; foi sepultado nos covaes dos Jeronymos.

A officina de Machado e Cerveira continuou ainda a funccionar, dirigida pelo seu ajudante e discipulo José Theodoro Correia de Andrade, sendo proprietaria a viuva D. Maria Isabel da Fonseca Cerveira. Extinguiu-se porém pouco tempo depois sem ter produzido mais trabalho algum importante.

Os maiores orgãos de Machado, com excepção dos dois que estão nos Jeronymos, não teem uma fabrica muito grande; podem até considerar-se pequenos comparados com os instrumentos monumentaes que existem espalhados pela Europa, e em Lisboa mesmo, antes do terramoto, havia-os muito mais grandiosos. São porém muito bem construidos, com solidez notavel, no gosto italiano predominante em toda a peninsula desde os fins do seculo XVII. Por isso nenhum tem o teclado de pedaes e raros teem dois teclados manuaes. São muito pobres nos registros graves, tendo apenas um flautado de 24 palmos ou 16 pés. A sua maior riqueza consiste na palheteria e nos registros compostos, que são sempre muito numerosos havendo registros com sete ordens de tubos.

São por isso brilhantes e estridentes nos cheios, mas pouco nutridos nos flautados. Satisfaziam ao gosto vulgar da época que exigia, mesmo na egreja, musica alegre e ruidosa.

Como se vê, o caracter d'esses instrumentos é completamente opposto ao dos orgãos modernos, cujas tendencias são para adoçar os timbres supprimindo de todo os registros compostos, diminuindo a palheteria e augmentando os flautados principalmente nos registros graves. Apezar do systema moderno ser incontestavelmente mais appropriado á musica religiosa a ao estylo polyphonico que a caracterisa, o nosso povo, por indole e habito prefere o antigo; e a preferencia não se limita ao baixo povo, porque ainda ha poucoum litterato muito distincto me disse gostar de ouvir os nossos orgãos antigos, com os seus timbres estridentes e caracteristicamente nacionaes.

No que porém os orgãos de Machado são por vezes admiraveis, é na esculptura ornamental.

Vê-se que conhecia a arte de modelar a madeira, fazendo-o com aprimorado gosto. Já me referi sobre este ponto ao orgão dos Martyres; os do Jeronymos, que foram planeados pelo pae, mas cuja execução não pode deixar de lhe ser attribuida, são muito mais grandiosos e de superior belleza. Mas o que a todos sobreleva no fino acabamento dos pequenos ornatos e emblemas em relevo, é o de Odivellas, actualmente na egreja de S. Julião. Tem este orgão uma cadeira que é tambem primoroso trabalho de esculptura em madeira.

Tambem é notavel sob o ponto de vista ornamental o orgão do convento da Estrella. E' dividido em cinco corpos lateraes, porque a pequena distancia que separa o côro da abobada não permittia desenvolvel-o em altura; os emblemas , festões e figuras inteiras nos remates, assim como os finos embutidos nos teclados e cadeira, constitue tudo trabalho de muito gosto para se admirar. Tem este orgão dois teclados, quarenta e tres registros e sete pedaes de combinações. A sua inscripção, manuscrita com letra bastarda muito bem lançada sobre uma prancheta de marfim, diz: «Este Orgão fez Antonio Xavier Machado e Cerveira no anno 1789. N.º 23.»

 

 

Texto gentilmente cedido por Francisco Falcão